Rafael Bahia: exemplo de humanidade e cidadania
Durante minha trajetória no terceiro setor, por todos os cantos do Brasil por onde passei tive a oportunidade de conhecer pessoas extraordinárias que me inspiraram, que me ensinaram e que ajudaram a me moldar como pessoa e como profissional. Dedico minha última coluna do ano a uma delas: o Rafael dos Santos – conhecido como Bahia. Esse texto é uma homenagem a um grande brasileiro e uma reflexão sobre cidadania, sobre doação e sobre humanidade.
Rafael Bahia era catador de reciclados há 29 anos na região da Cracolândia. Estima-se que no Brasil existam mais de 800 mil catadores, sendo eles os responsáveis por 90% da reciclagem do país. Esse serviço que é tão importante para o ecossistema urbano é realizado por um dos profissionais menos valorizados: os catadores. Por isso surgiu o Pimp My Carroça, iniciativa que veio para tirar os catadores de materiais recicláveis da invisibilidade e promover melhores condições de trabalho e renda para a categoria e que recentemente lançou um aplicativo, Cataki, que conecta os catadores com estabelecimentos que tem materiais reciclados para coleta.
Era dia 23 de maio de 2015, véspera do II Gala da Brazil Foundation (em São Paulo), um jantar beneficente que arrecada recursos para projetos no Brasil e íamos levar algumas das iniciativas beneficiadas pela fundação para participar do jantar. O Pimp My Carroça era uma delas. Três catadores iam participar do jantar e fui conhecê-los antes do evento.
Passei uma tarde inteira conversando com o Bahia – sentada na calçada em frente ao cortiço onde ele morava – enquanto sua carroça estava sendo recauchutada. Articulado, ele sabia exatamente quantas árvores ele tinha salvado baseado nos 300 quilos de papelão que recolhia todos os dias. Em suas quase três décadas de trabalho com reciclagem haviam sido mais de 100 mil árvores poupadas. Ele tinha muito orgulho do seu trabalho como catador, mas me contou que também sofria agressões. Às vezes gritavam para ele: "E aí véio, já comeu seu capim hoje?". Uma vez um rapaz chegou e deu um tapa na orelha dele e perguntou se ele não ia revidar. Bahia não comprava briga: abaixava a cabeça e seguia sua jornada. Não sei se os maiores calos que ele tinha eram os das mãos ou os da alma.
Bahia não era apenas um microempreendedor da reciclagem. Ele era a voz dos catadores, chegou a fazer uma palestra no TEDx no Colégio Dante Alighieri. Tinha consciência do bem que ele fazia para o meio ambiente e da sua contribuição imprescindível para a limpeza da cidade que ele tanto amava. Com a reciclagem conseguiu criar seus 10 filhos, sempre incentivando que eles estudassem e não seguissem o exemplo do pai de largar a escola.
Quando eu expliquei para ele qual era o propósito do jantar de Gala que ele ia participar – que estávamos arrecadando recursos para projetos que promovem inclusão social, educação e oportunidades para públicos marginalizados – ele pegou uma latinha, contou as notas e me entregou 20 reais. Isso equivalia a um dia do seu trabalho duro recolhendo materiais reciclados pelas ruas do centro antigo da capital paulista. Por um breve instante ponderei se deveria aceitar a doação ou não, olhei para o Mundano, fundador do Pimp My Carroça, que me acenou com a cabeça dizendo que sim. Com a cabeça erguida, Bahia me contou que gostava de ajudar e que contribuia todos os anos com o Criança Esperança, enfatizando que telefonava para doar várias vezes. Perguntei por que ele doava e ele respondeu que achava importante investir nas crianças do Brasil. Ele confirma a estatística de que no Brasil as pessoas mais pobres doam 3 vezes mais do que as pessoas que ganham mais. Rafael dos Santos representa um Brasil invisível, pouco valorizado, que trabalha duro e de maneira honesta, e que tem nível de consciência e cidadania mais elevado do que muita gente.
Dois dias depois, no jantar de gala, ele estava emocionado. Me contou que por 20 anos passou em frente da Sala São Paulo recolhendo reciclados e nunca imaginou que um dia pudesse estar lá dentro. Olhou pra mim com os olhos marejados e agradeceu "Patricia, obrigado. Vocês me mostraram o mundo".
Poucos meses depois, Mundano foi convidado para ser uma das personalidades que iriam carregar a tocha Olímpica pelas ruas de São Paulo e delegou a honra ao Bahia. Rafael iria representar os mais de 800 mil catadores do Brasil conduzindo um símbolo mundial que representa a paz entre os povos. Teria sido uma grande honra para ele e sua família, mas na noite anterior ele faleceu. Seu coração, que era tão grande, do tamanho das crianças, das árvores e das florestas do Brasil, não resistiu.
Rafael dos Santos chegou a ter temporariamente uma rua com seu nome, uma ação dos ativistas em sua homenagem, mas ele merecia um nome de rua de forma permanente. Que seu exemplo sirva de inspiração para todos nós nessa virada de década. Que a gente possa ser mais generoso, mais humano, que a gente invista nas nossas crianças e que a gente cuide melhor das nossas cidades. Desejo a todos vocês uma boa década de 20, com humanidade, cidadania e respeito. Rafael Bahia, RIP.
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